terça-feira, 1 de junho de 2010

Um dia

A vida humana é uma grande seqüência de rotinas. Ao redor do mundo, todo dia, todo mundo quase sempre segue a mesma rotina. Acordar, tomar banho, escovar os dentes, tomar café-da-manhã, sair de casa, ir tratar das obrigações diárias que até a mais fútil das vidas tem. Faculdade, trabalho, banco, dentista, comprar uma cafeteira nova para substituir aquela que quebrou, levar o Maltês para a acupuntura, reclamar para o seu analista que a sua vida é uma merda porque você não consegue manter o mesmo lifestyle que tinha no seu ano de intercâmbio na Europa, torrar parte da sua renda na aquisição de um bem qualquer com o nobre objetivo de querer se sentir melhor e mais bonito (jeans premium italiano, tênis creiço da Nike, camisa de seleção de país que você sequer sabe mencionar a capital – whatever, pouco importa. O efeito dessa satisfação de consumo vai durar mesmo só até o momento em que você usar aquele produto e perceber que nenhum modelo ucraniano veio se esfregar em você, que as pessoas não param e se viram quando você passa, que você continua exatamente igual ao que era antes. Publicitários FDP's!), esperar o caminhão da ONU trazer o próximo carregamento de ajuda humanitária, chegar em casa, jantar, assistir TV, dormir. E no dia seguinte, tudo de novo. A vida é uma grande seqüência de rotinas, de ações repetitivas que a gente acaba fazendo quase sempre no automático, com o headphone do iPod no ouvido (eu sei, eu também achei que a minha vida ficaria muito mais über-cool com um produto da Apple. Ledo engano. Acabei comprando um segundo simples e muito menos über-cool Phillips para poder escutar rádio e por não poder mais aturar over-and-over as minhas próprias seleções musicais), sem prestar lá muita atenção no que acontece ao seu redor. Afinal, tanta coisa para resolver, tanta coisa para pensar e time is always money.

E digamos, um dia, você abre a mochila e percebe a merda mor de segunda-feira chuvosa de qualquer morador de metrópole: esqueceu de carregar o seu iPod. Uma longa viagem pela frente, com absoluta e inevitavelmente nada para fazer. Numa viagem, numa cidade estrangeira, quando não se tem nenhuma obrigação chata e sacal da rotina diária pela frente, uma verdadeira delícia: a vontade é de absorver todos os barulhos, ruídos, alertas sonoros, conversas em idioma estrangeiro ao seu redor, pequenas partes do que é a vida cotidiana das pessoas num lugar diferente do seu. Mas na sua cidade, no seu dia-a-dia? O que de novo, de absurdamente interessante e inédito você pode encontrar? Nada, eu sei. A gente acaba tendo que se contentar com a mais normal, mais sacal e mais simples das atividades humanas: observar. E aos poucos, elas acabam ganhando um significado um pouco mais complexo. O cobrador do ônibus exausto, louco pelo fim da jornada de trabalho dele; a criança chata e irritante comendo Fofura e feliz porque está indo visitar os primos; os lindos e isthiluósos modelitos de inverno que proliferam toda vez que a temperatura cai abaixo dos 20C e/ou chove (li isso em algum lugar e repito: quem foi o louco que disse que “no inverno as pessoas se vestem melhor”? Seguramente ele nunca pegou metrô às 5.30h e deu de cara com aquele bando de gente enfiada em moletom, casaco jeans e gorro, praticamente um simulador 3D da FEBEM, néam?). Pessoas. Que até então eram meros obstáculos na calçada, ganham um significado ligeiramente diferente quando a gente tenta imaginar o que elas estão pensando, quem são elas (em outras palavras - Fernando é um louco hiperativo, portanto é melhor nunca deixá-lo sem nada para fazer!).

Sabe aquelas cenas completamente anônimas que você presencia e jamais mais esquece? Um dia eu estava num ônibus na Avenida Rio Branco, aqui no Rio de Janeiro. Também tinha esquecido de recarregar o iPod (ou faz tanto tempo que talvez fosse “comprar pilhas novas para o Discman”). E esperando o ônibus avançar por aquele trânsito caótico, sentado no ônibus, olhando pela janela, o meu olhar para numa mulher. Linda, elegante, absolutamente bem-vestida num trenchcoat, enormes óculos escuros no rosto. Contrastando absurdamente com todo mundo ao redor dela, parecendo buscar algum taxi livre para sair logo dali. E do nada, quando eu menos esperava, uma expressão de dor, uma enorme lágrima desce por uma das maçãs do rosto. Que ela prontamente seca, enquanto concentra todas as suas forças para manter aquela imagem de elegância e formalidade para o resto do mundo.

O ônibus partiu, e eu obviamente jamais saberei o que levou ela àquelas lágrimas. O que ficou foi o sentimento de que a gente não conhece nada sobre o ser humano, sabe? Que a gente projeta uma imagem de nós mesmos, muitas vezes tão trabalhada, tão complexa que... acaba sendo um retrato completamente infiel do que a gente realmente é. Do que a gente realmente sente. E assim, ninguém ao redor percebe o que está acontecendo, as coisas vão seguindo em frente, e uma hora quem sabe elas se resolvam...

Ontem o pai de uma amiga decidiu que a vida dele tinha tido segundas-feiras demais. E resolveu parar de seguir em frente.

O que dizer? Desculpem-me pelo texto meio sem nexo, meio sem encadeamento lógico. Mas é que eu precisava escrever, sabe? Assim que o Fernando funciona quando acontece algo que faz ele pensar muito. Fica irrequieto, e não sossega enquanto transformar isso em comunicação, expressão, de alguma forma. Não quero levantar debate sobre o suicídio, sobre o que leva uma pessoa a cometer um ato extremo desses. Fraqueza, desespero, depressão? Pode ser, quem sabe, mas... não muda nada. Acaba sendo como uma amiga me disse hoje: “Não sei se é um ato de coragem ou covardia extrema. Coragem, por chegar na última conseqüência e chegar a tirar a sua própria vida; covardia por não pensar na devastação que vai ser causada na vida de todo mundo que é importante pra ele”. De qualquer forma, é irreversível. Não pode ser mudado.

Qual a lição que fica? De que as pessoas são muito mais do que aquela superfície projetada para o exterior, do que a gente julga que elas são? De que no fundo, todo mundo é um oceano de sentimentos, e que a gente acaba enxergando quase sempre só a superfície?

Talvez de que a vida é importante de ser vivida. De que a vida feliz é importante de ser vivida.

E de como tem sorte quem sabe disso.

5 comentários:

Thiago Lasco disse...

Pesado, hein? Dá pra tomar uma Kaiser primeiro?

Hugo B. disse...

Em alguns casos nem a superfície nós conseguimos enxergar.

Unknown disse...

Eu ia fazer uma piadinha com uma situação lá do início, mas ao longo da leitura percebi que não seria apropriado.

Serviu como uma boa reflexão.

Fernando Lopes disse...

É .... denso....

Não sei se ajuda, mas tem perguntas escritas que só podem ser respondidas com ações, por que suas respostas sempre estão em movimento e não são apreensíveis por palavras.

Qual a lição que fica? Estamos vivos e em movimento. As pessoas são mais do que a superfície, mas elas também são a superfície, e é na superficie das pessoas que nos relacionamos, só na superfíce. O oceano de sentimentos é subterrâneo e inacessível. As vezes sentimos suas turbulências e maremotos na superficie, mas só. Podemos tentar afetá-lo de alguma forma, mas até mesmo para o outro esse oceano é desconhecido. Somos feitos de incertezas e decisões, de contrários que as vezes fazem sentido, as vezes não, e as vezes não precisam mesmo fazer sentido por que simplesmente são.

Unknown disse...

profundo....parabéns pelo encadeamento das idéias.