O avião realiza os seus últimos movimentos antes de parar definitivamente na pista do aeroporto de Portela. Os passageiros brasileiros, representando fielmente toda a etiqueta e finesse pela qual somos conhecidos no exterior, se atiram todos ao mesmo tempo aos bagageiros tentando tirar as 174 malas de mão Le Postiche como se o avião estivesse pegando fogo e formam aquela incompreensível fila que não vai andar porque os comissários ainda não abriram a porta do avião. A porta finalmente é aberta, a boiada começa a sair, quando a coisa começa a andar direito decido me levantar e depois que o seu Gérson de Araçatuba percebe que o meu sorriso não significa "Estou adorando ver você pescar as 8 malas de mão da sua família no bagageiro enquanto você impede que eu passe" finalmente saio do avião. O choque de temperatura que sempre acontece nas viagens em que você muda de hemisfério. Caralho, 7°C eram bem mais agradáveis na minha memória! E voilá, os primeiros passos em continente europeu itself.
Enquanto caminhava para a imigração, olhava ao redor e tentava comparar com a minha chegada em Frankfurt, primeira vez ever no exterior. Definitivamente a coisa perde a magia e o impacto depois da primeira vez. Agora eu estava bem agasalhado, seguindo tranquilamente meu caminho para a saída sem sobressaltos, em um aeroporto europeu razoavelmente bem sinalizado e organizado. (Tem uma coisa boa de ter a Infraero como administradora de aeroportos - a gente fica sempre preparado para o worst scenario case. Tenho sérias dúvida que o aeroporto de Jalalabad deva ser tão pior assim do que a pista de pouso que nomearam de "aeroporto" de Vitória...) Passei tranquilamente pela imigração, já que vinha para a Europa com um visto de longa duração para a França. No balcão do meu lado, um passageiro ainda de camisa de time de futebol, calça moletom e chinelos argumentava com o oficial português "Mas eu sou estudante de Direito da Universidade Federal da Paraíba, meu senhô!". O oficial português devolve o meu passaporte, revirando os olhos para a cena que se passa ao lado. Eu penso em como uma pessoa razoavelmente inteligente não consegue entender algo tão claro: você está viajando para o outro lado do mundo, você está viajando para um país que já nos colonizou (portanto com o qual sempre haverá algum tipo da herança do dominador x dominado - isso não acontece somente conosco, já vi acontecer com americanos na Inglaterra, mexicanos na Espanha e o mesmo com os habitantes dos territórios ultramarinos na França metropolitana), europeu é um povo chato que adorava analisar o outro pela forma de se vestir e você vai depende de um deles para entrar ou não entrar no continente. Custa meter um Converse, uma calça Jeans e uma camiseta branca e tentar ser educado sem dar carteirada?
Lisboa parecia Londres. 7°C, com uma neblina tão espessa como aquelas que costumam dar K.O. em Congonhas e Santos Dumont simultaneamente. Africanos, muitos africanos esperando na saída do desembarque internacional. Tudo exatamente igual, como da ultima vez que tinha vindo de Hamburgo. O aeroporto da Portela é pequeno em relação aos outros aeroportos de capitais europeias, as áreas comuns são mais compactas e a arquitetura interna lembra um centro comercial dos anos 90. E, apesar do considerável volume de passageiros, bastante confortável e visivelmente bem administrado. Achei facilmente o guarda-volumes, onde deixei a minha mala de mão por 3€ ou 4€ e peguei uma bolsa-carteiro, e parti para o ponto do Aerobus para ir para o centro de Lisboa.
Sentado em um autocarro que eu já conhecia. (Nunca me canso: por que o Rio de Janeiro não consegue seguir a bosta do exemplo, acabar com a concessão daquela bosta da Real Bus e montar um sistema minimamente funcional ligando os dois aeroportos à cidade?! 1,75€/R$2,30, regularidade de 10-15 minutos, ônibus normal com um bagageiro na frente. Simples assim. E melhor nem falar de Sao Paulo, porque ainda não consigo conter a gargalhada quando penso no Airport Bus Service cobrando R$33 para ligar Guarulhos à São Paulo.) Em uma cidade que eu já conhecia. Sem nenhum tipo de compromisso marcado. Olhando pela janela do ônibus e vendo os subúrbios de Lisboa passarem, as avenidas ligeiramente congestionadas durante o horário de rush matinal. Os azulejos e decorações dos prédios e casas de arquitetura portuguesa mais tradicional se alternando com as linhas retas, grandes espaços e concreto armado dos prédios de arquitetura moderna (International Style, Brutalismo, alguma coisa de Art Déco) que predominam fora do centro histórico de Lisboa. Engraçado como enquanto construimos Brasilia para tentar fugir da herança europeia carioca deixada por eles, eles faziam exatamente o mesmo nos seus subúrbios e colônias, e o resultado é algum tipo de sincronia entre os dois. Muitos prédios históricos que a crise condenou a algumas décadas à mais de negligência e descuido, mas que os criativos lisboetas decidiram intervir de alguma forma. A foto acima representa muito do que eu amo em Lisboa: uma decadência do clássico e do histórico, um não-conformismo e irreverência para a expressar a modernidade e criatividade inerente de uma cidade.
Primeira parada em Lisboa obviamente tinha que ser na Praça do Comércio. Primeiro, porque justamente durante a minha primeira vez em Lisboa ela estava em reformas e eu mal consegui ver a estatua do D. José I por cima dos tapumes da obra. Segundo, porque a Praça do Comércio é aquele tipo de lugar que concentra a essência de uma cidade. O tom de amarelo tipicamente lisboeta dos edifícios ao redor da Praça. O arco triunfal da Rua Augusta, de onde se espreita o movimento elegante das pessoas pela rua mais importante do Centro. As longas arcadas, com as repartições publicas e os sapatos dos portugueses elegantes ecoando enquanto eles seguem apressados para algum outro destino. E o Cais das Colunas... O Cais das Colunas, com as suaves ondas do Tejo batendo contra as escadas, o vento com cheiro de sal, a sensação que o Atlântico não se encontra muito longe, as gaivotas, a vista deslumbrante para a Ponte 25 de Abril. Um lugar de onde fica fácil compreender a relação de reverência e amor dos lisboetas com relação ao Tejo, o rio que leva ao mar, que leva ao mundo, ao ultramar. Onde eu acho que todo brasileiro que se entenda como de origem portuguesa tem um arrepio ao perceber sua origem, sua ligação tão próxima com algo tão antigo, tão belo, tão majestoso.
Passeio pelas calçadas ainda vazias do Centro de Lisboa, um expresso em um dos inúmeros cafés da Rua Augusta. (Inesperadamente acompanhado de um Marlboro Light! Portugal deve ser um dos últimos países da Europa que ainda permitem restaurantes com áreas para "fumadores e não-fumadores" e pareceu uma viagem no tempo poder fumar sentado, num espaço fechado, tomando um café enquanto outras pessoas faziam o mesmo ao meu redor...) Com somente algumas horas em Lisboa, o que seria impossível não fazer? Um passeio ao esmo no Eléctrico 28. Da Baixa de Lisboa até Martim Moniz, passando pela Alfama. O histórico do histórico, o turístico do turístico passando pela sua janela. Sé de Lisboa, Castelo de São Jorge, os miradouros fantásticos dando para os telhados e para o Tejo, as ruelas da Alfama, o Palácio de São Bento. Tudo isso com você circundado por hordas e mais hordas de lisboetas, ainda maioria na linha que é essencial para os moradores desses bairros, quase todos idosos com pacotes e mais pacotes, equilibrando-se em bengalas, enfiados em seus sobretudos para aquecerem-se do inverno português. (Idosos, idosos, idosos... A impressão é que Lisboa é toda ocupada por idosos. Não sei se lá eles saem mais ou se Portugal é mesmo um pais tão idoso como os números dizem. Todos com aquele irresistível ar fofo de vovô/vovó que a gente deixou no Brasil...) Pelas janelas, Lisboa passando. Alguns poucos sinais da crise. Cartazes de partidos políticos conclamando à Rejeição do Pacto de Agressão, como alguns nomeiam o pacote de medidas da União Europeia, organismos internacionais e do Governo Português para sanar a economia. Pichações xingando os políticos e anunciando o inicio de um novo período de trevas e regresso econômico para Portugal. Excesso de pessimismo tipicamente europeu ou experiência da antiga metrópole de um império global que teve que se acostumar com o provincianismo? Difícil saber agora.
Desci do Eléctrico em um ponto absolutamente desconhecido (Ah, as emoções e perrengues de viajar!). Peguei algumas informações dos invariavelmente simpáticos e atraentes, se você conseguir superar o fato de que eles batem no seu ombro policiais e desci para as imediações da Avenida 24 de Julho. Na hora de escolher a direção do eléctrico, oh duvida cruel! Para um lado, eu poderia voltar para o Centro de Lisboa e subir nos malditos elevadores que eu nem sequer tinha visto na primeira vez. Por outro, as docas de Alcântara e Belém. Claro que Belém. Mosteiro dos Jerônimos, Padrão dos Descobrimentos e Torre de Belém? Não. Belém e a Antiga Pastelaria de Belém. Ah, como eu esperei por esse momento! Descer do elétrico, atravessar a rua, passar pelas lojas de souvenires e restaurantes. Avistar os azulejos, o toldo azul da fachada. (E descobrir que alguma mente imbecil decidiu abrir um Starbucks dois números depois. O que merece o monstro português que, tendo acesso aos cafés, chás e os pastéis de nata quentinhos e fresquinhos da Antiga Pastelaria... decide voluntariamente ir a um Starbucks?! Começaria com 5 horas de um playlist composto unicamente de "Ai se eu te pego" no modo Repeat All/Repeat Always, só para louvar a herança lusófona deixada na antiga colônia da América do Sul.) Entrar na fila, pagar míseros euros, ver os atendentes polvilharem canela e açúcar nos pastéis quentinhos e os enfiarem na linda embalagem azul e branca de papelão. Escolher algum banco ao sol em frente ao Mosteiro dos Jerônimos, sentar e devorar os 4 pastéis como se fosse a primeira vez, vendo a vida em Lisboa seguir o seu curso. Lembrar dos dois anos que você sentiu tanta falta desse sabor, entrar em pânico, decidir voltar e comprar mais dois pastéis. Sentar de novo no mesmo banco e se sentir a pessoa mais gulosa do mundo, imaginando a quantidade colossal de açúcar e gemas de ovos que você acabou de consumir. Se sentir a pessoa mais gulosa do mundo, e rir de felicidade por ter origem portuguesa e culturalmente poder aproveitar sem culpa alguma toda essa felicidade que somente esse excesso de açúcar pode provocar.
Em Belém, encontrei com o B., que tinha me hospedado na sua casa na minha primeira vez em Lisboa. Fomos ao seu apartamento no calmo bairro do Restelo, almoçamos, conversamos sobre a vida, aproveitei para entender como os portugueses estavam reagindo à crise. (Ele também é economista.) "Os portugueses chegaram à conclusão que o pais simplesmente não é viável economicamente. Portugal jamais seguirá para frente.", disse ele. Ui! Pensei nostalgicamente na Lisboa da Alfama, dos bares do Bairro Alto, da Lux, dos restaurantes e prédios fantásticos de Alcântara, dos restaurantes e prédios fantásticos da Expo de 98 e me perguntei como estaria tudo da próxima vez que eu viesse a Portugal. Se teria eu visto Lisboa em um isolado momento historico de euforia e otimismo que teria servido de preambulo para um doloroso processo de decadência econômica. Enfim...
Uma passada na loja do Nespresso do El Corte Inglés para o B. pegar sua encomenda de capsulas. (Os elegantes portugueses saboreando expressos, lindos vendedores de meio metro de altura enfiados em ternos seguindo de um lado para o outro servindo xícaras e entregando capsulas, um sol de final de tarde de inverno entrando pela loja. Tão bizarro, uma cena tão europeia se passando na minha frente... em português.) E o B. me leva ao aeroporto de Lisboa, mais uma vez, onde nos despedimos até à proxima vez.
Duas horas para o horário de embarque, retiro a mala do guarda-volumes, faço o checkin e passo na revistaria. Compro alguns postais e na hora de pagar olho para a prateleira de livros. Bate uma puta nostalgia. Percebi que aquela seria a ultima vez, em seguramente muito tempo, na qual eu poderia ter o prazer de escolher um livro, ao meu gosto, para ler no meu idioma materno. Agarro a edição portuguesa de "A Primeira Aldeia Global: Como Portugal mudou o mundo" de Martin Page e "S.O.S. Angola", relatos e depoimentos da fuga dos portugueses e imensa ponte aérea organizada para evacuar todos os colonizadores às vésperas da independência de Angola, reunidos pela jornalista Rita Garcia. (Dois comentarios. #1: 200 mil portugueses se amontoando no aeroporto de Luanda para conseguirem embarcar em qualquer coisa, Portugal tendo que organizar a maior evacuação aérea da história, até os EUA enviaram aviões da American Airlines para ajudar e os FDP dos suíços cobram pelo uso da Swissair e deixam os portugueses passando fome de Luanda até Angola. Que eles eram o povo mais chato do mundo eu já sabia, mas mesquinho? FDP's! #2: Incrível que comentemos tao pouco sobre esse tema no Brasil. Em Portugal, contei 12 livros sobre o tema somente nas poucas prateleiras da revistaria.) Sento numa cadeira para escrever um cartão-postal para a vovó, o cansaço de uma noite mal-dormida, 3 horas de jet-lag, mudança de temperatura e o drama de estar 24 horas sem um banho começam a bater, coloco o cartão no correio e checo o relógio. Uma hora para o embarque no portão. Já que estamos em Portugal, bate a segunda nostalgia do dia e penso "Poxa, tão chato ir embora daqui... Gosto tanto de Tugal!". Supero a nostalgia pensando no meu namorado me esperando em Paris e na Boulevard Haussmann, Printemps, H&M da Champs, H&M da Haussmann, H&M do Les Halles. "Melhor ir agora... Caso sobre tempo, posso ficar olhando aquele bando de coisa cara nos duty free que nunca compro mesmo...", pensei. Inocentemente.
A maior fila para passar pela segurança em aeroporto que eu já vi na minha vida. Juro. Três raios-X para uma fila que tinha fácil umas 300 pessoas. Gelei. Mas pensei "Ah, deve andar rápido... Não é possível que eu vá ficar 45 minutos nessa fila!" e resolvi esperar na fila. 45 minutos para o embarque e eu devia ter andando 2cm. Os oficiais portugueses tocando o terror nas bagagens de mão da galera. ("Como assim vou ter que jogar fora meu Victoria's Secret?! Ju, te falei pra enfiar essa merda na mala, CARALHO!" ressoou pelo longa sala da checagem de segurança.) A porra da fila simplesmente não andava. Olhei para o relógio, 35 minutos para o embarque. Comecei a entrar em pânico. Olhei para o lado e vi uma fila separada que dava direto numa funcionária da TAP segurando um comunicador. Peguei a fila especial e educadamente falei para a funcionária que precisava embarcar no voo para Paris que ja estava sendo anunciado. "Nao é possível passar à frente no controlo de segurança. Ainda há tempo mais do que suficiente, podes esperar na fila." falou a portuguesa FDP bigoduda do caralho. Olhei para o relógio, olhei para ela com cara de "Será?", pensei que ela deveria saber mais do que eu, voltei para o meu lugar na fila e continuei esperando. 30 minutos para o embarque. 25 minutos para o embarque. A fila não andava. Simplesmente não andava. Começam a chamar os passageiros do voo no alto falante. Começo a chorar dentro da minha cabeça "Eu queeeero ir pro norte da Eurooopaaaaa! Me deeeeixa passaaar!". 20 minutos para o embarque. E vejo uns passageiros gringos tão em pânico quanto eu indo falar com a funcionária, que vira e responde falando em inglês que eles vão ter que pedir para passar na frente de algum passageiro. (E obvio que o passageiro aleatório deixa, porque dizer um não nessa hora provavelmente equivale à reencarnar como mulher muito gostosa, com a libido sexual da Valesca Popozuda. Na Arabia Saudita.) Lembrei das minhas origens e pensei "Qualé a dessa vacilona bigoduda aê, mermao? Deixando a galera passar a fila para entrar aê no baile, e eu aqui no maior vácuo? Ta de zoação com a minha cara? Vambora resolver essa parada aê!". Cheguei chegando e já mandei um "Olá, preciso passar AGORA!" para a bonitinha, que me devolveu que tinha que pedir para passar na frente de algum passageiro. Suspirei lembrando dessa maldita mania europeia de fazer você se sentir culpado por não ter chegado 749 horas mais cedo e querer te dar lição de moral justamente no momento que você não tem tempo para uma lição de moral caralho!. Cacei o primeiro passageiro com passaporte azul, fiz a cara mais Chat Potté possivel, entrei na fila, tirei cinto, tirei sobretudo, passei pela segurança opa, oficial de segurança gato!, coloquei cinto, coloquei sobretudo e lá foi Fernando correr como um louco pelo aeroporto da Portela. Um homem, um destino, uma meta.
(Será que Fernando conseguiu pegar o avião? Será que ele se lembrou de fechar o cinto e quase-nao ficar pelado no setor de salas de embarque do aeroporto de Lisboa? Será que a funcionária portuguesa da TAP irá conseguir encontrar uma solução para o hirsutismo que tanto a aflige? Mais, em um proximo post. :P)