segunda-feira, 9 de novembro de 2009

E um dia Berlim já foi duas...



Berlim é uma cidade complexa. Quem comeca o tour na Alemanha por Berlim quase sempre acha a cidade incrível e vibrante, mas para os estrangeiros que conhecem previamente alguma outra cidade germanica - principalmente a nórdica, organizada e rica Hamburgo - quase sempre tendem a detestar a desorganizacao, sujeira e falta de coesao arquitetonica que a atual capital alema apresenta. Berlim é suja, decadente, disforme e basicamente ainda é um campo de obras. As largas avenidas e os intermináveis blocos de apartamento de Berlim Oriental oprimem, a riqueza e opulencia capitalista de Berlim Ocidental sugerem desigualdade social - uma disparidade que quase nunca acontece nas outras cidades alemas do Oeste. Mas mesmo assim, todo alemao tem orgulho de ter a cidade como capital de novo. E sonham em ver a capital alema de volta ao posto das grandes capitais européias, como sao Londres e Paris.



Berlim é a síntese da história alema em cidade. A antiga capital prussa emerge como centro do novo Reich alema, capital de um país intectualizado, racional e esclarecido. Capital da nova Europa: uma Europa tolerante, progessista, para frente, em contraste com o conservadorismo e tradicao opressora de Paris e Londres. Berlim é liberal, é moderna, é a capital européia do novo século.

O novo século se mostra ingrato e cruel com Berlim. Duas guerras mundiais resumem a cidade a ruínas, e a outrora esclarecida, educada e humanista Alemanha ressurge da Segunda Grande Guerra humilhada pelas crueldades e atrocidades cometidas pelo regime nazista. Berlim ocupada, Berlim dividida, Berlim murada.

Durante 28 anos os berlinenses foram impedidos de circular livremente pela sua cidade. Todos nós estudamos isso nos livros de história, mas acho que somente em Berlim mesmo dá para ter uma dimensao exata da irracionalidade disso. Seria como por 28 anos os cariocas de Botafogo fossem impedidos de irem a praia em Ipanema, ou os paulistanos da Consolacao de irem tomar um chopp no Paraíso. Fora as inúmeras histórias de casais, famílias e amigos separados pela construcao do muro. Espacos de convivencia pública, como a Potsdamer Platz, que foram divididos e marcados como um terreno militar, tabuleiro de duas potencias mundiais. Acho que o efeito prático disso na vida dos berlinenses só pode ser visto mesmo dando uma olhada nos mapas históricos das redes de metro (U-Bahn) e trens urbanos (S-Bahn):

Berlim Ocidental, 1974 (As estacoes marcadas com X sao parte das linhas que passagem por dentro de Berlim Oriental e onde os trens ocidentais nao paravam - as chamadas Estacoes Fantasma)

Berlim Oriental, 1988: As linhas de trens "envolvem" Berlim Ocidental no lado esquerdo da figura, mostrando o isolamento da "ilha capitalista"

Quando fui a Berlim, em Maio de 2009, confesso que inicialmente odiei a cidade. Berlim, como eu falei acima, é suja, desorganizada, grande e feia: tudo o que Hamburgo nao é. A cidade é um choque de realidade quando se vem do lado Ocidental da Alemanha, mostrando que a integracao alema ainda tem muito a fazer pelos antigos Ossi's. Fiquei num hostel em Berlim Oriental com amigos do Erasmus (lembro da cara de choque da minha amiga sueca, e dava para ler na cara dela "E a Alemanha é mesmo um país desenvolvido?"), e apesar de ser um estudante de economia bem pé no chao, saber dos inúmeros problemas de habitacao que temos no Rio de Janeiro e Brasil... deu para perceber a scheiße que Berlim Oriental herdara dos soviéticos: é impossível se sentir bem num ambiente que trata as pessoas como números em um sistema. A arquitetura de Berlim Oriental é um erro que os próprios alemaes nao sabem como lidar: conviver com aquilo provoca desconforto e depressao, destruir significa gerar ainda mais custos para um país com economia cambaleante e apagar um passado que de alguma forma... faz parte da história da cidade.

No último dia na cidade, depois de inúmeras deventuras (a serem contadas num post futuro), tivemos um tour que mudou completamente a minha percepcao da cidade. Um guia ingles, estudante de história (lindo: amo cara de ingles esnobe + sotaque de listening exercise da Cultura Inglesa) levou a gente a um tour interminável pela cidade, e em cada 100m, parava para comentar algo que tinha acontecido naquela cidade.

E aquele tour me fez pensar... Pensamentos que eu só consegui consolidar na hora que eu voltei para Hamburgo, e vi essa cidade onde a maior parte dos prédios foi cuidadosamente reconstruída e onde a vida seguiu em frente depois da Segunda Grande Guerra.

A conclusao que eu cheguei foi a que, por mais complicados, paranóicos por controle, certinhos que os alemaes sejam... a capacidade desse povo de superacao é surpreendente. E que Berlim é a prova viva em forma de cidade disso. Berlim foi várias cidades durante o século XX, e ao mesmo tempo somente uma. E que se algo de positivo pode ser extraído desse século traumático para a cidade e para o país é que atualmente a Alemanha é essencialmente um país tolerante, democrático e livre. Os alemaes sabem o valor e a importancia disso - e por isso quase chegam ao extremismo na hora de controlar qualquer sentimento mais patriótico: alemaes nao falam que tem "orgulho" da Alemanha, e bandeiras sao bem menos encontradas do que em outras nacoes européias.

Mesmo assim, o clima hoje aqui é semelhante ao clima de dia da Independencia que temos no Brasil (na verdade esse clima comecou em Outubro, com o aniversário da Unificacao Alema, feriado por aqui). Há 20 anos atrás, os alemaes voltaram a ser um único povo: os comedores de salsicha, engenheiros que fabricam os melhores carros do mundo e obcecados por pontualidade. :) E de alguma forma, a queda do Muro permitiu aos alemaes fecharem definitivamente o capítulo da Segunda Guerra e seguirem em frente. Rumo a um país moderno, mas ainda sob as bases históricas de tudo que aconteceu aqui.

Termino o post meio nostálgico/meio aula de história com o vídeo recomendado pelo guia, em que o assessor de imprensa Schabowski comete a histórica confusao de anunciar (erroneamente) a abertura das fronteiras da RDA, provacando a histeria e o movimento de massa dos alemaes orientais em direcao aos pontos de controle entre os dois países.

Como eu brinco com os meus amigos alemaes, ironico pensar que o destino da controlada Alemanha foi definido... por um erro por falta de planejamento e cuidado. :)

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P.S.- De forma alguma eu quero desmerecer Berlim como destino de viagem nesse post, ok?! É só uma questao de preferencia pessoal: adoro organizacao, criancinhas loiras desenvolvidas correndo felizes pela relva de um parque bem cuidado e potinho de flores na janela (afinal, o meu lado virginiano tem que se manifestar em alguma coisa). Berlim é a cidade resultado da história européia do século XX., e se voce procura Europa Clássica (castelo, galeria histórica e restaurante com vista para o lago), melhor voltar para a CVC e pegar um daqueles pacotes "Europa Clássica - Madri, Paris, Roma e Veneza em 5 noites". Berlim é dura, suja e sem acabamento - mas é definitivamente uma cidade que vale a pena ser visitada. Ironicamente, a cidade assume mais uma vez o papel de capital da nova Europa que está surgindo. E a oportunidade de ver isso acontecendo é seguramente imperdível. :)

4 comentários:

dudufs disse...

Eu sou fascinado por História Contemporânea recente. Cada vez que leio algo novo sobre um mesmo fato que já vi e revi na escola e em várias leituras que faço no dia-a-dia me emociono.
Parabéns pelo post

Will Moritz disse...

Fernando, muitas coisas a dizer sobre este post! A primeira delas é que você é uma criatura comunicativa; percebe-se na fluência do texto, na forma como você conseguiu oscilar entre a seriedade de um texto por primeira vez mais sério sem perder as oportunidades nos momentos exatos para os comentários que personalizam seu estilo. Vá pensando em alguma forma de inserir-se no mundo da comunicação porque é nele que você encaixa e acho que com muito prazer, não???!! Em segundo lugar, não achei Berlin tão terrivelmente feia e suja, achei-a parecida com alguns bairros de Madri e Santiago do Chile. Acho que você realmente está com a visão um pouco viciada (Ipanema-Leblon-Hamburgo-Estocolmo te levaram pro mundinho de Prada). "Vâmo voRtando pra realidade" porque o retorno ao Brasil se aproxima :P E depois vamos fazer você passear um pouquinho pela Am.Latina; a gente aprende a valorizar outras belezas que não precisam necessariamente ser tão perfeitas arquitetonicamente. Em terceiro lugar, não sabia que havia uma Moritzplatz, não fui e é bem a última estação antes do antigo muro!! Preciso de uma foto nesse lugar! Em quarto lugar, a estrutura do texto está ótima e talvez sem querer você gerou uma coesão e uma linha de raciocínio digna de ótimos jornalistas. Em quinto lugar, se você que estudou dois mil anos de alemão e mora aí acha difícil entendê-los, como vou eu entender um vírgula do que o Herr Schabowski diz no seu pitoresco vídeo!!! Pode ir arranjando legendas! Em último lugar, acho que já elogiei demais nos últimos dias, vou ativar o sangue alemão e voltar ao estado normal de crítica ácida :) P.S. Obrigado por me fazer rir no meio do meu rush de tradução mais traumatizante de todos os tempos!

Fernando disse...

dudufs: Também adoro história contemporanea, e acho que por isso estudei alemao. É incrível ver tudo aquilo que a gente leu ao vivo, com as pessoas que participaram contando... Muito legal mesmo!

Fernando disse...

Will:

Primeiro: Obrigado! :) Amo os seus comentários e emails GIGANTES! Me fazem sentir que eu nao sou o único no mundo que adora escrever, e falar muito. E sim, eu adoro, sempre adorei escrever.

Segundo: Hahahaha MORRI com o "mundinho de Prada". :) Rs Ok, mea culpa: Estocolmo me acostumou mal, fiquei no meio do nada em Berlim Oriental e se tivesse ficado em Kreuzberg teria tido outra experiencia. Mas é inegável que Berlim é "rough", decadente e bem under. E isso foi um choque nao só para mim, para todos os outros gringos que estudam em Hamburgo e achavam que isso aqui é a Alemanha. Mas ao mesmo tempo, todo mundo saiu de Berlim com a impressao que a cidade é imperdível. E que merece mais do que 4 dias para visita-la.

Terceiro: Sim, a Moritzplatz ainda existe, acabei de ver no mapa de trens de Berlim! :) Se eu for lá antes de voltar ao Brasil, tiro certamente uma foto para voce.

Quarto: Danke!´

Quinto: Post posterior elaborado em sua homenagem.

Sexto: hahaha Sorry Will, seu sangue alemao se misturou demais com italiano, frances e espanhol. :) Too late for that, honey. :D

P.S.: YOU CAN DO IT! :)